26 de março de 2011

A situação do negro no Brasil



            A identidade de um povo, num Estado nacional, pode se transformar, lentamente, seguindo as modificações históricas ou de forma mais veloz, sobretudo em períodos de guerra ou de grandes transformações locais ou mundiais.        Muitas vezes tais mudanças são geradas durante certo tempo e, a partir de algum movimento, tornam-se visíveis.
            Assim sendo, para entender o presente, é preciso compreender o que a história significa no passado e para o futuro e, ainda, a diferença entre a história, os pontos de vista históricos e as interpretações da história.
            O Estado brasileiro, escravista durante mais de trezentos anos, reestruturado por conceitos republicanos excludentes, impôs e estimulou, ao longo da história, conceitos de nacionalidade que determinaram um discurso cultural distante da realidade multicultural do país.
            A cultura brasileira, essencialmente permeada por valores femininos, negros, caboclos, indígenas, definida por encontros e conflitos, foi mediada, durante anos, pelo discurso da democracia racial e sua manifestação material legitimada a partir de uma leitura política branca.
            A rica diversidade da cultura dos povos de origem européia aqui recriada, as africanidades brasileiras, as contribuições asiáticas, judias e árabes, as expressões indígenas resultantes dos conflitos da colonização, as características de nossa 'antropofagia', nossa identidade construída com referência em uma diversidade hierarquizada -, nem sempre essa dinâmica foi considerada pelo discurso que justifica e teme as desigualdades estruturais.
            Começa, porém, a ser desenhada uma cultura de democracia participativa, que necessariamente inclui a cidadania cultural. O Brasil, Estado/nação, vive, neste momento, um período privilegiado no que diz respeito às possibilidades de concretizar transformações fundamentais abortadas em vários períodos da história. As profundas transformações dos conceitos de identidade nacional são então amparadas por uma política cultural inclusiva, que começa a se materializar valorizando a diversidade e desestruturando a hierarquia herdada da escravidão.
            Em 1814, o governo geral do Rio de Janeiro recomenda ao governador da Bahia:
            'Determina Sua Alteza Real que V. Exa. proíba absolutamente os ajuntamentos de Negros chamados vulgarmente batuques, não só de dia, mas muito particularmente de noite, pois ainda que se lhes permitisse isto para os fazer contentes não deve continuar esta espécie de divertimento, depois de terem abusado tanto dela.'
(Com o aumento das revoltas dos escravos e de outros grupos pobres, principalmente a partir do fim do século XVIII, os batuques foram considerados focos de rebelião e esteticamente proibidos)
            O Brasil tem a maior população negra fora da África e a segunda maior do planeta. A Nigéria, com uma população estimada de 85 milhões, é o único país do mundo com uma população negra maior que a brasileira.
            Responsável pelo maior translado humano da história - entre 3,6 e 5 milhões de africanos foram importados para o Brasil, de várias partes do continente africano -, a escravidão gestou estruturas, relações sociais e econômicas, valores e conceitos, visão de mundo incluindo visão de Estado, que tinham por meta sua permanência, sobrevida e a manutenção dos privilégios resultantes.
            Só a partir da década de 1930, com base, principalmente, nas teses sobre a miscigenação e na forma envergonhada de expressão do discurso racista, consolidou-se no país o mito da democracia racial. O que significa que, ainda durante a maior parte deste século, foram inibidas ações de combate ao racismo, a organização cultural e política dos negros brasileiros, e a implantação de políticas para a superação das desigualdades raciais. No período pós-Abolição, a ausência de um sistema legal explícito que definisse as desigualdades e, ainda, as africanidades visíveis da cultura brasileira, serviu como argumento para que o Estado e a sociedade desconsiderassem a necessidade de se criar mecanismos para a inclusão do povo negro no processo de desenvolvimento nacional.
            A rica história invisível dos seres escravizados nos vários países africanos, sua recriação cultural, são apenas parte do ser cultural brasileiro. A polícia, a prática da medicina e das outras ciências, a cultura de produção rural e de utilização da terra, a política de imigração, o sistema político, os métodos utilizados para a sistematização dos dados, as relações de produção e de gerenciamento da riqueza, o regime de propriedade e de créditos, o sistema legal e o escolar, o mercado de trabalho, tudo foi estruturado para atender à necessidade de enriquecer os senhores, de controlar o escravo ou, depois, para consolidar e justificar as desigualdades.
            Mais de trezentos anos de escravidão, do século XVI até o final do século XIX, como instituição legal, social e econômica, que determinou o estilo de vida do Brasil colônia, representam uma referência histórica fundamental para se compreender as desigualdades raciais no país, e o aprofundamento da hierarquização dos direitos e da própria definição de humanidade, de valor social da pessoa.
            O escravo, para que a escravidão se justificasse, não era considerado um ser totalmente humano por nenhuma das instituições, inclusive pela igreja. As práticas culturais e religiosas, a visão de mundo desse conjunto humano foram sistematicamente desqualificadas, apesar de sua integração ao modo de ser nacional, após mais de trezentos anos de convivência cultural, e sendo a sua força de trabalho responsável pelo desenvolvimento da economia. A aparência física dos negros, exceto quando se tratava de servir sexualmente os senhores, foi associada à dos animais e esteticamente desagradável ou inferior. Seu corpo era para o trabalho e sua força utilizada corno a dos animais. A participação nas artes, extremamente relevante sobretudo no século XVIII, pouco ampliou os seus direitos, ou lhes assegurou o exercício da cidadania.
            "Durante a escravidão, e mesmo após, as expressões religiosas negras foram descritas por escrivão de polícia a que narrava invasões de terreiros ou derrotas de revoltas, por autoridades eclesiásticas e civis preocupadas em combater a 'feitiçaria' e a subversão dos costumes..." João José Reis

            Se o movimento abolicionista foi longo, heterogêneo e, por fim, vitorioso, a República surgiu como reação ao fim absoluto da escravidão, apesar do engajamento de lideranças negras no movimento republicano.
            Várias peças religiosas tomadas dos 'pretos', africanos, e dos 'crioulos', afro-brasileiros, ainda hoje estão nas delegacias, senão foram destruídas ou desapareceram.
            Principalmente a partir da promoção, pelo Estado, da imigração européia subvencionada para substituir a mão-de-obra negra, da criação de status superior de cidadania para os imigrantes recém-chegados em relação aos negros, das promessas do Estado de embranquecer a nação, da participação periférica dos afro-brasileiros no processo de industrialização, da fraca representatividade política, da desqualificação de suas referências culturais, estruturou-se o que pode ser chamado o sistema de exclusão racial informal.
            O desejo, a quase que necessidade brasileira de ser uma democracia confundiu-se com o mito desmobilizador longamente cultivado.

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